terça-feira, abril 16, 2024

Estratégia versus histerotégia


 


domingo, abril 14, 2024

Filo-xemitismo pictórico


 


quinta-feira, abril 11, 2024

Bizarrias no palramento

 Frases fortes do mais recente último-ministro do rectângulo:

1. "Vamos cumprir Abril!"

- Só? Contávamos que ficassem pelo menos até Junho...

2.  "Nós não somos uma aventura!"

-  Pois não. O caso, por enquanto, é mais da ordem da auto-estimulação solitária.

3. "Como escreveu Saramago..."

- Citar Saramago gera sempre uma (legítima e candente) angústia operativa ao aficionado: De caras? Ou de cernelha? 



segunda-feira, abril 08, 2024

Colonoscopia cultural, ou A Zappar desde 1984

 Por falar em wokismo e cancelamentos...

Ainda falta muito para cancelarem este gajo nos States (e respectivos satélites de trazer por trela)?... Andam distraídos, os purritanos!...

Prestem bem atenção às letras: duma actualidade chispante. Mais politicamente incorrecto seria difícil. Thing Fish, um triplo lançado em 1984, pasme-se. Ou então não.

                                                







Etnopatia paranóide

 Hubris, a receita universal para o desastre.


Uma ladainha milenar de pacotilha, regurgitada ad nausea por judeus postiços. É como a tanga do antixemita de alguidar. Para engodar acéfalos e amedrontar parolos.

domingo, abril 07, 2024

A Minha Odisseia - I. O primeiro dia



«Não é apenas, ocasionalmente, que atrás dum grande homem está uma grande mulher. É sempre: atrás de qualquer homem está uma mulher: aquela que o pôs no mundo. Maior exemplo de amor, valor e coragem não se conhece."               



A minha digníssima mãe, Deus a tenha e recompense, como já aqui referi, transportou-me dentro dela 9 meses e, mal eu saí cá para fora, tomou a minha educação a seu cargo. Aliás, em vez duma mãe mimadora e apaparicante, graças a Deus, a mim calhou-me em sorte uma mãe instrutora, cuja ocupação sagrada e principal era fazer de mim um homem. E desde pequenino!... De tal ordem que, quando, pelos meus seis anos, me foi depositar à escola, eu já ia educado. E não apenas educado: instruído em boa medida. Os rudimentos de ler, escrever, contar, assinatura, rubrica, caligrafia, tudo isso, já ela me ministrara. Mas isso era apenas a ponta do icebergue: um aparato nada despiciendo da História de Portugal  também já me equipava as tenras meninges. Desde a devoção a Nuno Álvares Pereira, à espada pesadíssima do Fundador, aos dentes do Decepado, até aos domadores do Cabo das Tormentas e ao vencedor do Gungunhana, passando pelos milagres da Rainha Isabel e os expedientes da padeira de Aljubarrota, com um pincelada alógena à epopeia de Joana d'Arc, constituíam já a minha armadura mental no dia, dum Outubro qualquer, em que penetrei, pela primeira vez, os umbrais do estabelecimento público de ensino - uma daquelas escolas primárias monumentais e típicas do Estado Novo, meninos dum lado, meninas do outro. Na véspera, fora mesmo armado cavaleiro, com o seguinte e solene imperativo categórico: "não te metes com ninguém, respeitas toda a gente, mas se alguém se meter contigo, defendes-te, ouviste?! Livra-te de voltares para casa com queixinhas que te bateram: apanhas ainda mais!" A minha mãe, convém assinalar, era transmontana. Mas isso não era o mais terrível: o pior é que a mãe dela também era. E munida dum vocabulário camiliano que muito me fascinava, bem como de um feitio de antes quebrar que torcer -  viúva, criara cinco filhos, em batalha vitoriosa contra toda uma aldeia de semi-ciclopes. Para reforço da filha e por via das dúvidas, também ela, de visita à barbárie da capital, me crismou, em missa Te Deum, com o seguinte preceito civico": "Se algum bandalho te quiser bater, não prometes: dás-lhe logo; mas não é com a mão, pegas num pau e dás-lhe com ele pelos cornos abaixo!" Importa ainda referir que boa parte da  minha educação religiosa, praguejante  e nobiliárquica (os pergaminhos da família), fora ela a transmitir-mos.

Armado, então, destes belos princípios (que guardo e mantenho religiosamente até aos dias de hoje e, estou determinado a manter até à hora da minha morte), lá segui, pois, a minha mãe até à escola. Naquele tempo obscuro, as mães, pelo menos a minha, pilotavam-nos no primeiro dia, de modo a ensinar a rota, mas depois era connosco: passávamos a arrostar sozinhos (ou em bandos) todos os perigos da travessia (que ainda eram alguns). Além da não chorar, um homem, por muito minúsculo que fosse, não tinha medo. Era gente rude e muito pouco delicada, a daquela época. Enquanto seguia nessa viagem inaugural, meditava, intrigado, sobre uma questão operativa deveras perturbante: se ia para uma iminente refrega, para que raio me servia aquela bata branca - ia ingressar no corpo médico? Que vergonha, que descrédito, que desinteresse! A glória está em causar hemorragias, não em contê-las. De bem melhor dignidade (e vantagem) seria uma armadura e capacete, com espada ou maça de armas a condizer. Ainda tentei levar o arco, mas  a severa progenitora impôs-me, em descompensação,  a caneta de tinta permanente (era-me de todo inútil na primeira classe, mas ela devia achar que as armas não se portam por utilidade ou interesse, mas por princípio).  Enfim, não sei o que os outros fedelhos iam fazer à escola, provavelmente aprender a ler e a escrever. Eu, em contrapartida, lembro-me bem, ia para me bater em defesa da honra da Pátria e da minha família. Só depois de bem salvaguardada estas, estaria a minha própria reputação garantida. Firmemente disposto, assim, a não me desonrar e, comigo, a família e a Pátria, despedi-me da minha mãe e acometi os portões daquele Adamastor. De relance, fitei o céu, semi-encoberto, donde Nuno Álvares, Afonso Henriques,  Vasco da Gama, Ulisses e a padeira de Aljubarrota me vigiavam, solenes e perscrutantes. 

Só depois de todos estes cuidados soberanos, dirigi os olhos para os meus futuros colegas. Estavam também todos vestidos com bata idêntica, o que me transportou a sombrias confabulações e desencantos. Ameaçava-me um tugúrio de enfermagem, quando o que eu aspirava era uma escola  militar!... Só então, provavelmente enviada pelos meus mentores e tutores celestes, me ocorreu uma ideia redentora: lembrei-me que também os homens do talho e açougueiros em geral trajavam uma bata semelhante. Animou-se-me o espírito e desassombrou-se-me o futuro... Entendia agora da utilidade e funcionalidade da bata: era para não sujarmos a roupa com o sangue do inimigo. Muito poupadas e previdentes, as mães do antigamente!...

Querem que vos conte a lúcida dedução que retirei do meu estudo daquela fauna durante a semana seguinte? Fica para o próximo capítulo. Mas posso ir já adiantando o essencial: falavam um dialecto abstruso, onde a estridência e a asneira colidiam em caótica competição; corriam sem sentido e manifestavam-se sem quaisquer noções da missão sagrada dum português no mundo. Apenas num ponto - melhor dizendo, num objecto - não me eram totalmente estranhos: a bola. Mas essa era, naturalmente, a excepção à regra. Pelo que, após aturada, discreta e distante observação, extraí o seguinte dogma empírico: eu estava confinado, durante o horário escolar, e sobretudo durante o recreio, a uma caverna de mini-ciclopes. Foi então que, por um qualquer processo misterioso, senti que Ulisses já não estava no céu, com os Outros, a vigiar-me: estava dentro de mim. A dar-me força...e argúcia subtil. Claro que nunca o contei a ninguém, muito menos à minha avó. Duvido muito que Odisseus apreciasse ser despromovido a Anjo da Guarda.



sexta-feira, abril 05, 2024

Metamorfose ou transfiguração?

 DISTO:


PARAISTO:

          



Do Titteringotango para o Micro-Tolifemo Cabeçudo, a ucranisteia é a mesma. Este, aliás,  promete ser ainda mais ululário, roncante e mãos largas.  Em resumo: o trogloditismo mascarado de "estado de não sei quê" prossegue a bom galope. 





quarta-feira, abril 03, 2024

As Lágrimas de Ulisses



«Ali, pois, estava deitado o Argo, todo comido de piolhos. Como reconhecesse Ulisses, agitou a cauda e baixou as orelhas; mas já não tinha forças para se aproximar do seu senhor. Ulisses notou isto; e, voltando a cabeça, enxugou uma lágrima (...) Nesse momento, a morte apoderou-se de Argo, que tinha visto, há pouco, Ulisses.»
               - Homero, "Odisseia, Rapsódia XVII

 

A história que Homero contou aos gregos, contou-ma a mim a minha mãe, pelos meus cinco anos. Fascinou-me desde esse dia. Mesmo sem todos os detalhes e peripécias, como as que pude ler anos adiante, foi esse relato oral que a mais profunda impressão me causou. Quase ao mesmo tempo que ela ma contou, ouvíamo-la, em conjunto, numa espécie de teatro radiofónico (ou radionovela) que havia nesse tempo mágico da minha infância. Não havia televisão, nem telemóveis, nem play-stations,  nem nenhum desses venenos com que actualmente se prossegue em vida a interrupção voluntária da gravidez. Havia, isso sim, um rádio, como esse em epígrafe, do qual o meu pai era grande entusiasta. Como eram tempos obscuros e arcaicos, transmitia coisas prodigiosas, para os meus ouvidos minorcas, como a Odisseia, de Homero e, numa outra altura, se bem me lembro, com não menos espanto para mim, a própria viagem do Vasco da Gama. A ideia que, por comparação ao Portugal da minha meninice, faço deste onde ora anoiteço, é a de que caminho, alternadamente, entre um patíbulo e um cemitério. A ideia da morte perante esta qualidade de vida colectiva, é-me, por isso, cada vez menos penosa. Nunca tive medo da morte. Todavia, agora, suscita-me já, não apenas curiosidade, mas alívio. Graças a Deus que ela existe e nos abrevia as penas.
Mas falemos da eternidade. Dos heróis que não morrem. Começo pela peripécia que, na Odisseia, constituía para mim a mais  formidável de todas: a gruta de Polifemo. Nada a suplantava em assombro. O diálogo radiofónico, encenado pelos nossos grandes actores da época, transportava-me milénios atrás e eu assistia ao confronto entre o herói e o gigante ogresco, simultaneamente horrorizado e maravilhado, como se lá estivesse ao vivo, numa espécie de transe onírico onde o tempo e a própria existência banal se viam ultrapassados. Indignava-me até com a história (e a momentânea impotência de Ulisses) quando Polifemo devorava os infelizes companheiros do navegador. Mirolho, desmedido e ainda por cima canibal, a imensa besta atentava em cheio contra o meu sentido de harmonia e justiça no mundo (mania que ma azucrina desde pequenino, sabe lá Deus porquê, porque só me tem acarretado problemas). Anos adiante, a minha espeleologia enriqueceu-se: desci  à caverna de Platão e li relatos de Ésquilo acerca de seres mirmitónicos que habitavam em cavernas, antes de Prometeu os transformar em homens. Estes, portanto, tinham sido troglwdythes antes de se tornarem anthropos. Quase em simultâneo, do lado de fora da janela, constatei também uma grande algazarra e tumulto: estavam a transformar a minha própria Ítaca numa caverna. Em forma de rectângulo. Não só era toda a Grécia que reverberava em nós desde Camões que se impunham liquidar: era a própria condição vertical de Anthropos que urdiam banir. Importava remeter os habitantes, meus conterrâneos, ao estado mental de "trogloditas".  Andam nisso há cinquenta anos. E não se pode dizer que tenham sido totalmente ineficazes.
Não obstante, o que significa, exacta e amplamente, "troglodita" tem o seu interesse. Cavernícola ou "homem das cavernas" ainda hoje se mantém actual. Troglos, como antron, pode significar caverna, buraco. Mas o "viver na caverna" remete também para um estado pré-civilizacional, pré-histórico, de rude selvajaria e brutal ferocidade meramente animalesca. Os trogloditas a que Prometeu concede a "humanidade" não passam de bestas, ou pior, insectos. "Viviam em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros fervilhando. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar"... Assim, logo à partida, o que o Filantrópico Titã produz não é uma criatura ad nihil (como certos demiurgos criacionistas), mas uma forma de ser superior. De certa forma, Prometeu protagoniza o proto-educador ou proto-pedagogo (aqui, educação e pedagogia no seu sentido originário, nobre), e, desse modo, promove o troglodita a um ser capaz de civilização. Mas esta não enquanto verniz ou cobertura meramente confeita, mas como sentido, como arte de orientação através das letras, das estrelas e das virtudes. E com isso alcança dois portentos: por um lado desagrilhoa da matéria bruta um ser pensante (e por isso tem que pagar, de modo a reequilibrar o cosmos, com o seu próprio agrilhoamento); por outro, liberta um - como evoca o coro da Antígona, que ainda reverberará no século XX num dos últimos grandes textos da Filosofia, a "Introdução à Metafísica", de Martin Heidegger) - "deynos", ou seja, o mais terrível dos prodígios do mundo - um ser, que Sófocles descreve logo de contínuo como "aquele que faz o seu caminho pelo meio dos abismos" (o ser que navega, enfim). O homem, em suma, potencia-se como um ser perigoso, porque doravante, armado da múltiplos expedientes, capaz do bem e do mal.  Que nasce, e cresce desde esse berço mítico, sob a vigília perpétua de duas esfinges à cabeceira: a Sabedoria; e a Hubris. A sabedoria que o eleva, ampara e guia através o abissal caminho; a Hubris que o embosca,  atrai, vertiginosa, e o arrasta à perdição e ao naufrágio. E eis o paradoxo vivo, o paradoxo humano: o passageiro da Bênção e da Maldição, do espírito subtil e da matéria bruta, do cosmos e do labirinto. O Antropos, no fundo, aquele que transporta em si a contradição - a antro onde retrocede e a criança que do antro se evade e para fora do antro conduz. A arte  de Prometeu tem um nome: antro-paideia.
Ora, o aviso da Antígona é solene e perdura: «Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessariamente para o mal ou para o bem. Quando ele respeita as leis da pátria e dos númenes, engrandece a cidade; mas torna-se a sua ruína quando a soberba o empurra para o mal. Não esteja a meu lado, não fale mais comigo quem actua de tal forma.»
Da mesma forma, tornando agora a Polifemo, este representa, em monumento avantajado, esse trogloditismo a que o Antropos, tomado da Hubris, retrocede e reflui, denegando e desprezando toda a dádiva benévola que originalmente o acendeu, melhor dizendo, o animou. Trata-se, em bom rigor, duma desalmação ou desinspiração exorbitada; um completo, desmedido e arrogante embrutecimento. Polifemo afirma-o sem rodeios: "Os Ciclopes não temem nem Zeus (...) nem os outros deuses bem-aventurados! A todos eles somos superiores!" E antes, já Homero descrevera: "Cíclopes, homens soberbos e sem lei, mas tudo lhes nasce espontaneamente, sem ser preciso semear nem lavrar..." *
Digamos então que o Ciclope representa o "troglodita", o primitivo antropóide no seu estado de pura "natureza", absolutamente silvestre e asselvajado. Por um lado, faz corar Rousseau; por outro, anuncia toda a vasta turba de utopistas ateus do nosso tempo. A subsistência cai-lhes do céu e a sua soberba superioridade em relação aos deuses nem se discute. Bem como a antropofagia mental e económica, encetada num labiríntico antro chamado Mercado ou Estado Socialista, em que invariavelmente descambam. De resto,  da mesma raiz que "trwglhe" (cova, buraco), trwgw significa, muito alusivamente, "devorar", "comer cru". O que assinala muito bem um dos vícios psico-alarvajantes desta troglo-gentalha, sempre disposta a ingurgitar toda a espécie de porcarias ou mixórdias sem qualquer tipo de preparo, asseio ou tempero.
E tanto assim, que é muito sugestivo e emblemático, o diálogo entre o herói e o megabruto, falando aquele pela Sabedoria e este pela Hubris: o primeiro declara-se, humildemente, "ninguém"; o segundo proclama-se, jactantemente, como sobranceiro aos próprios deuses. É claro que o destino da monocularidade ímpia é a cegueira fatal, tanto quanto a ciclopeia (que é como se intitula a Rapsódia IX da Odisseia), tem vários refluxos menstruais (ou recorrências fétidas) ao longo da História. Um bastante conhecido e particularmente cavernosos ficou conhecido como "en-ciclope-distas". Nunca enganaram ninguém. Só mesmo quem adora encafuar-se em buracos. Tudo indica que é ciclico. E polifemico... Eu traduzo: Poly-fhemos significa, no grego, muito sábia e lucidamente, "abundante em vozes", "muito propalado", "muito louvado", "de múltiplos rumores". Há alguma relação entre o poly-fhemi e o pro-fhemi? A mesma que entre o polifemo e o profeta. Aliás, acontece até, como está bem documentado, na variada "ciclopeia moderna", quando Polifemo e Profeta se acumulam na mesma pessoa. Exemplos: Locke, Rousseau, Marx, Malthus, Darwin, Husserl, Freud, Lenine, Jabotinsky e um mais recente, singularmente rafeiro: Leo Strauss. Enfim, a lista está longe de ser exaustiva. Actualmente, há mesmo uma tribo que os produz em série. 

Falta falar dos dois outros episódios da Odisseia que muito me sensibilizavam: quando Ulisses arma o arco; e quando o cão de Ulissses, Argos, o reconhece e morre logo de seguida. No primeiro caso, era o regozijo mais completo com a vitória e a justa vingança do bem. O herói saía do labirinto, e saía em glória. Aquilo enchia-me de felicidade. Inflava-me também duma força, coragem e razão inauditas. Estava explicado o mundo. Mas o segundo caso, esse, era mais complicado. Muito complicado, mesmo. A ver se consigo explicar isto...
A minha mãe, além de me transportar na barriga, ensinou-me muitas coisas (foi o meu Prometeu, de certa forma): ensinou-me as letras, os números, as estrelas e ensinou-me um outro preceito típico daquelas épocas obscuras: um homem não chora. Muito menos um aprendiz de herói. Portanto, não me restava alternativa. Posto perante aquela tragédia do cão do herói, eu tinha que ir rapidamente esconder-me num sítio secreto e, esse sim, muito obscuro, deveras... para poder cobrir-me de vergonha e... chorar. E chorei.

Só mais tarde, quando li a Odisseia inteira, comprovei que afinal o Herói, o maior de todos, também chorava (enfim, não era português, temos que compreender). E chorava tanto que o mar de Ulisses, como o mar de Jesus, ou o mar dos portugueses, mais que um mar de façanhas, prodígios e glórias, é, abissalmente, um Mar de Lágrimas. 




segunda-feira, abril 01, 2024

Esperança e Nostalgia (através do Labirinto)

 



A Viagem mais famosa do Cosmos, paradigma cultural de todas as subsequentes peregrinações poéticas, fê-la Ulisses no seu regresso a casa, após a Guerra de Tróia. Homero contou-a aos gregos; os gregos legaram-na à humanidade, e dela emergiu uma civilização. O itinerário dessa viagem faz-se entre terras, ilhas e portos, mas através do mar: é, pois, uma viagem essencialmente marítima. Nesse sentido, é uma digressão sobre uma superfície perigosa e instável, feita de abismos, vertigens, monstros, falsos paraísos e forças sobrenaturais que, de certa forma, encontra o seu clímax, na descida ao Hades, o lugar dos mortos. É, por conseguinte, uma aventura entre mundos  -  o estrangeiro e o de casa, o ignoto e o familiar, o dos antepassados e o dos vindouros (ou os mortos e os vivos). Por isso, além de profana, é uma demanda religiosa: reúne, religa, confere sentido, entre a origem e o fim - o destino da viagem é reencontrar o seu ponto de partida. Ulisses percorre o labirinto, só que não se trata do dédalo inventado, mas daquilo que ele simula: o caos enquanto não mapeado com o fio do sentido. Como todos os grandes heróis civilizacionais, Ulisses desvela e descobre o cosmos. Percorre o labirinto, mas fá-lo ao leme dum navio. No que inspirará os gregos tanto quanto um outro povo meridional muitos séculos adiante: os portugueses. Eu próprio, pelos meus oito anos, deslumbrei a minha professora primária quando, a propósito duma redacção sobre a nossa terra natal, rompi nos seguintes termos: "A minha terra foi fundada por Ulisses, o Navegador..." e por aí adiante. Consegui, desde essa data, conforme bem me lembro, acumular três cargos:  o de melhor aluno e de maior arruaceiro dos recreios (que já era antes) com o de favorito da professora (que passei a ser). O facto de conciliar na mesma pessoa o melhor aluno e o maior bruto, de resto, já manifestava a minha tendência precoce para o paradoxo. Conseguia estar horas a ler cartapácios sobre a Grécia antiga (no que, dizem, entrava num estado de alheamento total), e conseguia, com não menor dedicação, andar horas à porrada, sobretudo com o Moreira, o tipo mais corajoso que conheci, pois perdia sempre e nunca desistia. Um verdadeiro Heitor, Deus o guarde!... Contudo, se repararem bem, há uma lógica contundente nisto tudo: era Ulisses, na sua dupla natureza que me inspirava - por uma banda, o Ulisses sagaz da Odisseia; por outro, o Ulisses beligerante e pugnaz da Ilíada. Ora, as emulações, por mais precoces e minorcas que sejam, devem ser sérias, devem ser completas. 

Mas a viagem de Ulisses é sobretudo simbólica: a odisseia significa e profetiza todas as odisseias (desde a vida humana às aventuras cósmicas de cada povo). Funciona como uma espécie de metacartografia íntima da existência. O próprio cristianismo, na figura do seu Fundador, cumpre a odisseia: oriundos de Deus, a Ele devemos regressar. É o próprio Deus que abre o caminho, dando o exemplo. A Fé, que Jesus nos revela e disponibiliza, é a confiança num regresso a casa - é o fio (o con-fiar) do sentido que nos permite vencer o labirinto. Só que este, doravante, como mar da alma humana, tão inçado de abismos, monstros e perigos quanto o mar de Ulisses. A saída, não obstante, coincide com a entrada: a morte e o nascimento apenas prenunciam a perfeição do círculo... A eternidade, onde tempo e espaço se geminam e perpetuam. 

O fio da Fé é também o fio de Penélope e da Moira que tece: Penélope que aguarda, o Destino que concede e a Fé que conduz. A partida, a viagem, o regresso. Os gregos chamavam "nostos" à volta, ao caminho de regresso; e "algos" à dor. A Fé de Ulisses é a de todos nós: a saudade de casa. A Fé é uma nostalgia, como a nostalgia é o anseio excruciante, doloroso de voltar à pátria. Não se explica: sente-se. Bem entendido, a Ítaca de Cristo é o Céu.

Entretanto, também o ponto de partida anseia pelo regresso daquele que partiu: move-o por atracção, quer dizer, move-o à distância, ao longe, pelo coração - como o Deus de Aristóteles faz mover o cosmos. A suprema felicidade coincide assim com a extrema gravidade. É a mais séria das seriedades. Jesus chama-lhe amor, como já Aristóteles tinha chamado. O mesmo amor que compele Ulisses: amor à mulher, aos filhos, aos pais, à Ítaca onde reinou e voltará a reinar. Antigamente, isto tinha um nome síntese: amor à Pátria. Por outro lado, Ítaca não é Ítaca sem Ulisses; Ulisses não é completamente Ulisses sem Ítaca. A Esperança e a Nostalgia espelham-se no fazer e desfazer das noites e dias, como no tecer e destecer do tapete de Penélope. Falta Ulisses a Ítaca, tomada pela ilegitimidade e a delapidação dos pretendentes - o falsos candidatos à pretensa eleição duma Penélope desamparada. Penélope que, ao contrário de Clitemnestra, se mantém fiel - nunca perde a fidelitas nem o fio. No fundo, pressente-se a ponta desse mesmo novelo que conduzirá, nalgum dia, Ulisses até ao desenlace final - onde a Esperança e a Nostalgia se reencontram e se curam mutuamente. Ulisses também significa o portador da cicatriz e o que cicatriza; ele, o herói, que, para lá da aparência, se identifica através da cicatriz. Como Cristo mostrará as cicatrizes a Tomé. .

Mas se Penélope tem o fio, Ulisses opera um outro instrumento essencial à viagem, à náutica: o leme da nau. Ulisses é o chefe e o piloto da expedição. Cybernos, diz-seno grego clássico. A direcção e orientação da nave é o seu mister e a sua excelência. Na realidade primeira e original, um cybernautes - o cybernos da naos. Através de Cyla e Caribdis, do Canto das Sereias, da suinicultura de Circe, do matadouro de Polifemo, de praias e naufrágios, e até da Olissipo dum miúdo excêntrico de milénios adiante, Ulisses terá alguma vez perdido o rumo, mas nunca perdeu o fio nem o fito. E num dia perfeito como só as histórias reais alcançam, desembarcou mendigo no mesmo lugar donde outrora partira rei. Todavia, sob a máscara do tempo e da viagem, trazia consigo, intacta, a força da autenticidade e o cybernos que a Ítaca faltava. Uma Ítaca que, finalmente, recuperado o seu chefe e piloto, podia levantar âncora e zarpar pela Eternidade. Onde eu, pelos meus oito anos, juro, a vi passar.

Agora a chave: Sabem qual é a palavra que no português, na língua que nos resta, traduz e materializa, ainda hoje,  integralmente, e apenas aí, cybernos

- Governo.



PS: O que distingue o Mito da História é que aquele nunca perde a actualidade nem a autenticidade. A História trata da encadernação de versões de relatos; o Mito trata da verdade eterna. E tanto assim é que ainda hoje, nós, portugueses derradeiros, experimentamos uma "Ítaca" tomada pela ruína e devassidão de pretendentes, por via da ausência do Cybernos autêntico. Lá está, porque também, ao contrário da História, que passa, o Mito permanece. E permanece vivo. Quanto ao essencial, aprendi com o Moreira: nunca desistir, nunca perder a fé. E nisso, proclamo ao mundo, venceu-me: era mais valente do que eu. Eu era apenas mais forte. 



sábado, março 30, 2024

A Passagem da vida







 

« (...) a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, apenas isso é cristão... Uma tal vida é, hoje ainda, possível, e para alguns necessária: o cristianismo autêntico, o cristianismo primitivo, será possível em não importa qual época... Não uma crença, mas um fazer, acima de tudo muitas coisas a não fazer, um modo diferente de ser. (...)

A vida do redentor nada mais foi que essa prática - a sua morte nada mais foi também que ela... Não necessitava já de qualquer fórmula ou qualquer rito nas suas relações com Deus - nem sequer a oração. Liquidou as contas de toda a doutrina judaica da penitência e da reconciliação; reconhece que é unicamente a prática da vida que permite o sentir-se "divino", "bem aventurado", "evangélico", sentir-se a cada instante "filho de Deus". Nem a penitência, nem a "prece pela remissão" constituem caminhos para Deus: só a prática evangélica conduz a Deus; ela, justamente, é "Deus"! - O que já não estava em circulação depois do Evangelho era o judaísmo das noções de "pecado", "remissão dos pecados", "fé" - toda a totalidade dos ensinamentos da igreja judaica era negada na "boa nova".
O profundo instinto do modo como se deve viver para o homem se sentir "no céu", para se sentir "eterno", enquanto que qualquer outro comportamento o impede de se sentir "no céu": é essa a única realidade psicológica da "redenção". - Uma conduta nova, não uma nova crença...»

                 - Fredrisch Nietzsche


À maneira dele, muito pouco linear, nem sempre sensata, Nietzsche também, lá bem no fundo e na essência, era religiosamente aristotélico. Quer dizer, entendia o Bem, no caso humano, como um agir, uma forma de ser na vida. Não uma estrita crença, mas uma ética plena. Aristóteles vislumbrava na contemplação - a acção pura, "divina" - a forma mais nobre da felicidade humana; Nietzsche, na senda de Shopenhauer, equiparou essa mesma felicidade contemplativa à Arte. Talvez porque esta demandasse, por assim dizer, um nível excelente da própria beleza: o sublime. Convém, para o caso, ponderar o seguinte: o entendimento (mai-la sua excrescência, a razão) impedem-nos de apreciar a aceder a esse mesmo grau magnífico da Filosofia ou da Arte. Que, a limite, tem um nome: Deus. Atinge-se apenas enquanto antes do entendimento, na sensibilidade (e aí, a Arte), ou para lá do entendimento, na inteligência (e aí, a Filosofia). 

Quando entramos numa catedral ou escutamos a música de J.S.Bach sentimos - pelo menos aqueles dotados de sensibilidade para isso - Deus. Uma emoção ou comoção profundas, pungentes, inexplicáveis. Sendo certo e evidente, todavia, uma coisa: foi por uma acção humana, de arquitectura e música, que se abriu essa passagem, essa ponte. Um ser capaz desse prodígio não está só; nem temos o direito de nele perder  a Esperança.

Por um instante, em certas passagens sublimes desta vida, é como se Deus nos emprestasse o Seu coração, os Seus ouvidos e os Seus olhos. Com lágrimas e tudo

Uma Feliz e Santa Páscoa para todos, com uma dedicatória especial à minha leitora Fernanda.




quinta-feira, março 28, 2024

Entre a Inércia e a Mentira




 Segundo vou escutando, em repetidos alarmes radiofónicos, o país resvala do desgovernado para o ingovernável. Não sei se me aflija, se me marimbe. Confesso que não vislumbro com clareza a gravidade do caso. Tratar-se-á duma degradação ou dum avanço? Dizia o Frederico Nietzsche que "vale mais um mau sentido do que sentido nenhum". Bem, isto, assim a frio, além de não constituir dogma, também suscita algumas dúvidas. Desçamos a casos concretos... Por exemplo, eu, ou um dos caros leitores (quando eu digo "leitores" enuncio à maneira antiga, vertebrada, significando leitoras e leitores - as senhoras primeiro, sempre e soberanamente, claro está) entre estarmos parados ou corrermos a atirar-nos a um poço, ninguém decerto nos convencerá que a segunda opção é preferível à primeira. Ou estarmos quietos e andarmos a rabiar que nem baratas tontas, também julgo ser indiscutível ficarmos sossegadinhos. É claro que ficarmos quietos para sempre, a limite, também não é uma opção viável: significaria que estávamos mortos ou tetraplégicos. Portanto, o Frederico que me desculpe, mas este seu aforismo, embora até soe bem como poesia, carece, ele próprio, de algum sentido. Como alternativa séria (dito à moda de Aristóteles) não funciona lá muito bem, ou funciona tanto quanto aquela capciosa fórmula do "a democracia é o pior dos regimes excepto todos os outros". Se tanto, pertence mais à índole histriónica. A questão, de resto, é de fundo e essência: nenhum mal pode ser convertido retoricamente num bem. Se é um mal, não presta. O contentar-me com um mal menor é o primeiro passo para convocar um mal maior. Não posso entender como uma opção deliberativa o "ser esquartejado e frito" ou "ser apenas frito por inteiro". Não me está a ser concedida uma possibilidade de escolha: apenas sou coagido sob ameaça. Assusta-me mais, muito provavelmente, o ser esquartejado. Por outro lado, tornando ao mau ser preferível ao nenhum, também não é ontologicamente aceitável: o mal e o nada são indistintos - o mal traduz precisamente uma ausência: a ausência de bem. Um mau sentido é um sentido que conduz ao nada, por conseguinte, nem sequer é um sentido, apenas a sua falsificação. "Mau sentido" é uma contradição em termos (pois, um oximoro). Assim como um mau regime não pode ser melhor que regime nenhum: ele próprio é regime nenhum. Sendo mau, é nada. Em que é que um nada é pior ou melhor que outro? Além disso, um mau regime tão pouco pode ser comparado como um "regime qualquer" - dizer um "qualquer regime" ou "nenhum regime" é idêntica, na medida, em que de nenhum regime específico se trata. De resto, a Democracia onde? Quando? De que modo? Para quem? Com que fim? Não existe "democracia em abstracto" (excepto, eventualmente, na república angélica). Se falamos num regime com aplicabilidade para pessoas é de realizações concretas neste mundo, entre determinadas pessoas, gentes, povos que importa saber. Que é necessário investigar e aferir. Por conseguinte,  se alguém fala em democracia, um conceito estritamente político, em termos metafísicos e, pior, neo-religiosos, então esse troca-tintas desautoriza-se, empaspalha-se e cobre-se de ridículo. Se são aos milhares, estes papagaios, então pior não apenas um pouco.  São tantos que viraram praga? Todas as pragas passam. Todavia, nem são os ruídos que movem o mundo, nem, tão pouco, o ruído apaga a verdade das coisas: a democracia não é um dogma. Não temos que acreditar ou deixar de acreditar nela. Nem os exibicionistas crentes são beatos automáticos prometidos à canonização; nem os descrentes podem ser degradados a hereges e ímpios que urge excomungar do demo-evangelho.

Mas voltando à fórmula...

Podemos substituir o sentido pelo governo? Um mau governo é melhor que governo nenhum? É melhor sermos desgovernados ou ficarmos ingovernáveis? - dito noutras palavras mais radicais: é melhor sermos desgovernados ou não nos deixarmos desgovernar? Reparem: um país desgovernado é um país sem governo. Porque um governo que não realiza enquanto curador do bem comum é um não-governo (um desgoverno, enfim). Vou aqui atirar-me à miséria, ao descalabro moral e à dependência múltipla, compulsiva e variada. Alguém me dirá que estou a governar mal a minha vida?  Todos antes certificarão é que não tenho  governo nem tino nenhum nela. Talvez uma meia dúzia, mais amigos das polémicas ou dos jornais, obstarão em contrapartida que sim, que tenho um governo legítimo, embora péssimo, procurador não do meu bem, mas do meu completo mal e ruína. E isso, a limite, até é bom, porque atesta da minha santa liberdade e do meu pleno direito electivo. Um terceiro elemento, inclinado a bizarrias ainda mais avantajadas, argumentará mesmo, em prol do descarrilamento geral, que isso é até racionalmente justificável porque, segundo um delirómetro de sua invenção, tal me granjeou grande prazer sexual e voluptuosa gratificação nalgumas partes. A questão é que eu não preciso da liberdade para me atirar duma falésia para nada. Um projecto de morte não é um projecto de vida. 'Bora lá rebentar com Portugal para demonstrar ao mundo como somos um povo livre. Num belo dia, acordamos e identificamo-nos não como homens, mas como gaivotas. E toca de nos atirarmos pela janela. A pretexto de que vamos voar e maravilhar o mundo com tal perícia inaudita. Navegadores do antanho, pasmai e sumi de vez: eis que os voadores do futuro descolam!  Já não somos orgulhosamente sós, que maravilha, que esplendor! Pois não; virámos orgulhosamente doidos! Militantemente malucos! Alarvemente suicidas! Não se tratou, nem trata, de uma manifestação de virtudes, cívicas, morais ou o que seja, mas apenas do oposto, da ausência de tudo isso. O que não resulta numa pessoa, muito menos resulta num povo, a não ser que este se resuma e nadifique a uma resma de mentecaptos, um arraial de chanfrados e uma quadrilha de bandidos.

Eis-nos, pois, chegados à presente nacinha rectangular. Julgo não exagerar nem faltar à realidade se disser que se divide em duas porções: uma, silenciada, que aguarda, há cinquenta anos, por alguma espécie de governo; e outra, ruidosa, arrotante, que rabia, frenética e tontamente, ensaiando as mais variadas fórmulas de desgoverno. A primeira está a ficar impaciente; a segunda está a ficar gasta. Sinais evidentes de que nada aqui dura para sempre: nem a Inércia, nem a Mentira.