segunda-feira, maio 17, 2004

A NAVE DOS CANIBAIS



Em 1819, princípios de Agosto, a escuna baleeira Essex zarpou de Nantucket, para mais uma auspiciosa campanha, de engenhoso massacre e industrial recolha, pelos mares do Pacífico. Aí chegados, e quando se entretinham na depredação dos corpulentos mamíferos, aconteceu o impensável: uma das baleias, misteriosamente enfurecida com a actividade humana, desembestou direita ao navio e abalroou-o, duas vezes consecutivas. Ferida de morte, a nave adornou e afundou-se. Foi este episódio verídico que inspirou Melville para o seu romance "Moby Dick".
Mas ali, na imensidão oceânica -ao contrário da ficção literária-, é depois do naufrágio que se vai desenrolar a verdadeira tragédia. Amontoada nos três escaleres remanescentes, a tripulação, com temor de eventuais tribos canibais a oeste, rumará para leste, em direcção à costa sul americana. Com os salvados possíveis de comida e bebida, entregam-se à aventura.
Em Dezembro, chegam à Ilha de Henderson. Lamentavelmente, a ilha é exígua e não oferece condições de sobrevivência para todos. Partem de novo, à excepção de três que pedem para ficar. São os mais afortunados. Serão resgatados meses depois. Os restantes embarcam num cruzeiro pelo inferno. Esgotados os mantimentos, começam a devorar os camaradas mortos. Por fim, a bordo do escaler do capitão só já existem quatro sobreviventes. Tiram-se sortes. A palha mais curta calha ao moço de cabine, Owen Coffin...

Lembrei-me desta história horripilante a propósito do nosso planeta. Também ele se assemelha cada vez mais a uma nave à deriva no espaço, com inquietantes problemas logísticos.
E agora que o "Aquecimento Global", segundo o Pentágono, parece constituir um perigo maior que a Al Qaeda, as perspectivas de excesso de população, catalizado pela escassez de alimentos (em consequência de catástrofes climatéricas e destruição subsequente de culturas), começam a ser cada vez mais evidentes.
Note-se que já em 1990, Margaret Thatcher, numa conferência no Aspen Institute, Colorado, acerca do tema "Global Agenda", avançou com a posição malthusiana de considerar a população (em excesso) como o principal problema ambiental do planeta. Entusiasta da superioridade anglo-saxónica, elite esclarecida do nosso mundo, Maggie acrescentou: «Our ability to come together to stop or limit damage to the world's environment will be the greatest test of how far we can act as a world community...Science is still feeling its way and some uncertainties remain. But we know that very hight population growth is putting enormous pressure on the earth's resources...The costs of doing nothing, of a policy of wait and see, will be much higher than those of taking preventive action now to stop the damage getting worse
Mas, enfim: nada que uma boa campanha de infecção e vacinação simultânea, à escala global, não resolva!...A vantagem das bactérias é que ninguém as vê. A verdadeira guerra moderna é low -aliás, very-low - prophile. E very low mesmo sem ser prophile também.

Duma coisa não convém ter dúvidas: chegada a hora da luta pura e dura pela sobrevivência, não há lugar para morais nem contemplações. A ferocidade da natureza que habita dentro do homem virá sempre ao de cima. Ao pobre Owen, no escaler funesto, ainda o deixaram escolher a palha mais curta. Aos excedentários do mundo, duvido muito que lhes concedam semelhante consolação.

Mas depois há também a ferocidade da natureza aí fora. Têm razão os do Pentágono em avisar que é uma ameaça maior que a Al Qaeda. Sem dúvida. Ao contrário desta, a Natureza está completamente fora de controlo. E zangada. Muito zangada.
Umbigos à parte, convenhamos: tem razões para isso.

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