segunda-feira, maio 24, 2004

O UNANIMISMO


Não me venham com fascismos, comunismos, socialismos, social-democracias, liberalismos, nem quejandos estados febris da nação.
Este país nunca foi, em momento algum, ou por desnorte momentâneo que fosse, fascista, nem comunista, nem socialista, nem social-democrata, nem liberal. Desenganem-se. Acabem lá com as peixeiradas inóquas. Poupem-nos às basófias bacocas do costume, aos alardes de circunstância. Este país anda a ser, faz daqui a nada um século, única e exclusivamente unanimista. Se querem um nome para a simples doutrina política que por aqui medra e floresce, aí a têm.
Duvidam? Espreitem lá bem detrás da fachada: o PS é o quê? Socialista, social-democrático, social-liberal? Ora, é o que o secretário geral que ganhar eleições for - quer dizer, é soarista ou guterrista, por exemplo. E o PSD? A mesmíssima coisa: é sá-carneirista, cavaquista, barrosista, consoante a preia-mar.
De facto, mal lhes cheira a poder, os partidos transfiguram-se. Transformam-se em verdadeiras Coreias do Norte ou Albânias heróicas e sitiadas...Da noite para o dia, emergem, quais asteróides deslumbrantes e irresistíveis, os Grandes Líderes, os Guias Imortais, os Super-Homens do momento. Galvanizadas, histéricas, as massas prostram-se em adoração. Os confrades devêm acólitos, os companheiros, sequazes. A dúvida, a consciência, o amor próprio, a indivídualidade, desaparecem. São banidos. O formigueiro encontra a sua rainha; a colmeia a sua abelha-mestra. Os caprichos desta tornam-se leis da física; o seu olhar suplanta a luz do sol; os seus amigos e parentes próximos, por osmose e reflexo, sobem a luminárias omniscientes.
Invariavelmente, é este tipo de unanimismo que ascende ao poder e ao leme da nação. Dum casulo tecido com mil fios de sabujice, lisonja e hipocrisia invertebrada, irrompe, num belo dia, uma impante crisálida ditatorial: Um nano-Kim Jong Il, um quasi-Fidel, ou, para sermos patriotas nesta matéria, um micro-Salazar. A partir daí, é todo um ciclo que se reinicia...
Por uma temporada, de quatro a oito anos, o país sente-se revisitado. Mas apenas por uma sombra, um espectro, um simulacro do pujante autocrata de outrora. O país também não se queixa: ele próprio já não passa, frouxamente, duma sombra, dum espectro, dum simulacro de país. Em suma: o fantasma mirrado e diminuto de Salazar vagueia, feito alma penada, pelo simulacro de país. Como num estado zombie. Como em transe de governação vudu.
Assim, tudo somado, a nova e apregoada "democracia representativa", não transcende muito o multiplicar de pequenas autocraciazinhas sufragadas. Como se o vício arreigado, a mania empedernida, se rissem, em possessão ambulatória, de todo e qualquer arremedo de cura ou reeducação. Inexpugnável, o unanimismo, é, ainda e sempre, o mesmo. Apenas as suas figuras de proa são cada vez mais minúsculas, insignificantes, efémeras. Na verdade, a diferença que vai do xarope despótico vitalício ao iogurte político de validade cada vez mais limitada. Do Salazarismo ao micro-salazarismo.
Não admira, pois, a crise. São tempos de precaridade, estes: até os títeres são contratados a prazo. Recebem à tarefa. Ao frete.

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