sábado, outubro 16, 2004

Os Dragonários - I

Há momentos e tiradas na vida dos escritores –o vulgo chama-lhes excentricidades –, que, quanto a mim, valem um romance dos bons. São desarrincanços de puro génio, merecedores, não dum Nobel que é coisa vulgarizada, muito menos dum Óscar que pior um pouco, mas dum Dragonário, que é Distinção Nobilárquica da Ordem do Espírito que eu mandaria instituir após a minha morte, não se desse o caso –lastimável para o vertente projecto- de ser, eu, imortal.
Assim sendo, que se lixe! Atribuo-os em vida. E, dessa forma sincera, vou distinguindo mortos que são ainda mais imortais que eu.
Começo por um senhor chamado Gérard de Nerval. Consta que se suicidou, na rua da Vieille-Lanterne, em Janeiro de 1855. Subiu ao Olimpo da Bizarria no dia em que resolveu passear no Palais Royal, arrastando uma lagosta viva pela trela. Inquirido sobre tão insigne extravagância, respondeu: «Em que é uma lagosta mais ridícula do que um cão?... Gosto de lagostas, que são sossegadas, sérias, conhecem os segredos do mar, e não ladram.»

São estes raros momentos de clarividência sublime no espírito humano, juntamente com a música de Bach e Mozart que constituem provas inequívocas da existência de Deus. As únicas, aliás, que reconheço. Quanto ao famigerado “argumento ontológico”, escuso de vos dizer o local exacto onde podereis enfiá-lo (precisamente o orifício donde ele saíu).
O divino não se explica, manifesta-se.

2 comentários:

zazie disse...

!!! ":O)))
a beleza da inteligência tem esse brilho bizarro e deve pertencer a um deus que saiba dançar- como suspeitava o malandro do Nietzsche.

C disse...

Além disso, as lagostas - à semelhança de outros crustáceos - têm o excelente hábito de tomar banho, por iniciativa própria e com inusitada frequência.
E ganham em toda a linha aos canídeos, até no fim da linha propriamente dita, i.e., cabem perfeitamente numa panela com água a ferver quando já não servem para fazer companhia. São facílimas de cozinhar, ao contrário dos bóbis. E ganham também no sabor e na suculência, presumo.
Não têm ambições territoriais, pelo que são extremamente amigas do ambiente. Não tentam fazer badalhoquices com as pernas do dono. Enfim, é só vantagens. E não esqueçamos o que podemos aprender com elas, as nossas amigas lagostazinhas: perseverança, método e concentração.
Grande cachola, esse Nerval.