sexta-feira, maio 27, 2005

O último avatar de Homero



«Se fosse cá podia divertir-se, o Proletvich! Ainda por cá temos umas distracçõezitas, umas malandrices clandestinas, uns prazeres, vá lá! Nem o próprio explorado a 600 por 100 dispensa as suas rambóias!... Como ele gosta de se raspar do emprego e com um smoking novo (de aluguer) brincar aos milionários whisky! deliciar-se com um cinema! É burguês até à medula! tem o gosto dos falsos valores. É macaco. É corrupto... É mandrião até à alma... Só gosta do que for caro! ou então o que tiver esse ar! Venera a força! Despreza o fraco! É petulante, é vaidoso! está sempre ao lado da "batota"! Visual acima de tudo, o que interessa é dar nas vistas! Voa para o néon como a mosca. Não resiste. É todo pechisbeque. Pára automaticamente quando chega ao pé do que poderia torná-lo feliz, afável. Sofre, mutila-se, sangra, rebenta e não aprende nada. Falta-lhe o sentido orgânico. Foge-lhe, teme-o, torna a vida cada vez mais amarga. Precipita-se para a morte sob os açoites da matéria, nunca suficientes... O mais maroto, o mais cruel, o que leva a melhor neste jogo consegue quando muito apoderar-se de mais armas para matar ainda mais e se matar. Assim, sem limite, sem fim, estão os dados lançados! O jogo está decidido! está ganho!...(...)
Deixa-se de ser tratante sob a acção de uma catástrofe. Quando tudo torna ao normal, a natureza retorna logo ao que era.»
- Céline, "Mea Culpa"
A 27 de Maio de 1894, nascia aquele que viria a escrever a "Odisseia" do século XX -"Viagem ao Fim da Noite", de seu título: Luis Ferdinand-August Destouches (aliás, Céline).
Escarro potente e bem temperado da Arte no rosto da academia e nos impotentes, rasteiros e eunucos de todas as épocas, é daquelas obras, como o "Quixote", "Os Demónios" ou "Guliver", que valem por uma literatura.
É daqueles momentos em que percebemos que, afinal, e apesar de toda a porcaria em que porfiam de encobri-la, sempre existe no Homem, profundamente impressa, a marca de Deus.

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