quarta-feira, novembro 02, 2005

Uma questão de pudor e de falta dele

O grande acontecimento político do momento tem como protagonista Soares, aliás Avô Cantigas, aliás Padrasto da Democracia. Do alto da sua justa indignação, acusa Cavaco, aliás Professor Tabu, aliás Pai do Monstro, “de não ter coragem de assumir, com orgulho, que é um político profissional”.
Diante de tão tremenda revelação, o país sustém a respiração e sidera. Detalhe crucial para o futuro de todos nós, esta pintelhice sublime submerge-nos numa preocupação inaudita. Há até quem arranque cabelos, e se espoje em lancinante desespero pelo chão.
Parte da urbe, em transe, interroga-se e interroga os céus: “Mas ele não se assume, porquê? Isto de político profissional é como ser gay?...”
Outros tantos, igualmente intrigados, conjecturam: “Mas porque é que ele não assume? Se foi ele que engravidou a pátria, agora não quer assumir a paternidade do rebento?...”
Finalmente, uns terceiros, tão confundidos como os anteriores, alvitram: “Mas porque diabo não quer assumir?... Quer exercer no ramo, mas não quer passar por rameira?”
Bem a toda esta boa gente desnorteada permito-me eu fornecer os humildes serviços de tradução, para que não tropecem mais na exegese.
Assim, bem no fundo e traduzindo com rigor, aquilo de que o Padrasto da democracia acusa o Pai do Monstro é, tão somente, de ter pudor.
"Orgulho", como atributo para político profissional, neste país, é, mais que eufemismo, cobertura de chantilly para uma poia (maj)estática. Neste calão descarado da vida fácil, serve de sinónimo na retórica para "desfaçatez", "bojo" ou "desplante" na realidade.

Mas se o decoro é detalhe absolutamente despiciendo para uma puta, porquê perder tempo a discuti-lo?
Bem, é o direito à indignação. Soares indigna-se. Faz de matrona escandalizada. Cavaco resguarda-se e ruboriza. Faz de debutante tímida.
A democracia, essa, confinada ao bordel, faz de conta. O povo, se tivesse memória e, mais ainda, se tivesse dois pingos de vergonha na cara, fazia um grande manguito.
Mas pedir memória e vergonha à turba é o mesmo que pedir leite a uma rocha. E requeriria mais que um milagre: requeriria dois.

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