domingo, maio 28, 2006

Os Caldos Imperiais

«Ao que tudo indica, alguns começam a achar a tarefa desagradável, ou melhor, impossível. A sua infelicidade enche as páginas dos semanários liberais, e todos os navios que saem de Nova Iorque transportam uma carga gemebunda com destino a Paris, Londres, Munique, Roma e locais ainda mais longínquos. Qualquer destino serve para escaparem às grandes maldições e atrocidades que lhes infernizam a vida na terra natal. Deixem-me desde já afirmar que pouco tenho a objectar às suas principais queixas. De facto, em mais do que um aspecto, vou talvez muito mais longe do que os Jovens Intelectuais. Por exemplo, uma das minhas mais firmes e sagradas crenças, resultado de mais de vinte anos de estudo e apoiada em oração e meditação constantes, é que o governo dos Estados Unidos, tanto no ramo legislativo como no executivo, é ignorante, incompetente, corrupto e repulsivo, e não isento deste julgamento mais do que vinte legisladores no activo e outros tantos agentes do poder executivo. Não deixo também de acreditar piamente que a administração da justiça no seio da República é estúpida, desonesta, contrária a toda a razão e equidade, e não isento deste julgamento mais do que trinta juizes, incluindo dois com assento no Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Estou igualmente convencido de que a política externa dos Estados Unidos –o seu modo usual de lidar com outras nações, amigas ou inimigas – é hipócrita, dissimulada, desonesta e desonrosa, e deste julgamento não admito quaisquer excepções, recentes ou remotas. É minha quarta (e última, para evitar um balanço demasiado deprimente) convicção que o povo americano, grosso modo, constitui a mais timorata, choramingas, pusilânime e ignominiosa multidão de servos e praticantes de ordem unida que alguma vez se juntou sob a mesma bandeira em toda a Cristandade desde o fim da Idade Média, ficando mais timorata, mais choramingas, mais pusilânime e mais ignominiosa cada dia que passa.
Por isso, tudo somado, estou com os fugitivos Jovens Intelectuais - mesmo para além das Terras Más. Estes são, em suma, os artigos cardeais da minha fé política, fervorosamente professados desde a minha admissão à cidadania, e deles estou cada vez mais convicto à medida que me vou desintegrando no carbono, oxigénio, hidrogénio, fósforo, cálcio, sódio, nitrogénio e ferro de que sou constituído. É nisto que acredito e é isto que prego, in nomine Domini, ámen. E no entanto, quando zarpam os Jovens Intelectuais, quedo-me no cais, embrulhado na bandeira. E no entanto, aqui permaneço, sem vacilar e sem desesperar, um Americano leal e devotado, pagando os impostos sem queixumes, obedecendo a todas as leis a que fisiologicamente se pode obedecer, aceitando sem protestar os deveres e as responsabilidades fundamentais da cidadania, investindo os parcos usufrutos da minha ingrata labuta em títulos da dívida pública, evitando qualquer convivência com homens empenhados em derrubar o governo, dando a minha modesta contribuição para a glória das artes e ciências nacionais, adornando e enriquecendo a língua nativa, rejeitando todos os engodos (e mesmo todos os convites) para ir para fora e por lá ficar: eis-me, um solteiro desafogado, quarenta e dois anos, sem dívidas ou preocupações que me constranjam, livre de ir aonde me apetecer e de ficar o tempo que me apetecer; eis-me, prazenteiro, ufano até, ao abrigo da bandeira nacional, melhor cidadão, atrevo-me a dizê-lo, e de certeza menos queixinhas e menos exigente, do que milhares que põem Sua Exc.ª Warren Gamaliel Harding ao lado de Frederico Barbaruiva e Carlos Magno, que defendem ser o Supremo Tribunal directamente inspirado pelo Espírito Santo, que são membros fervorosos de tudo o que é clube Rotário, Ku Klux Klan e Liga Anti-Saloon, que sufocam de emoção quando a filarmónica executa "The Star-Spangled Banner" e que acreditam, à maneira das criancinhas, que um dos Nossos Rapazes, escolhido ao acaso, é capaz de arrumar, numa luta justa, dez ingleses, vinte alemães, trinta franciús, quarenta italianos, cinquenta japonocas ou cem bolcheviques.
Assim sendo, por que continuo aqui? Por que sou tão complacente (ao ponto, talvez, de ser ofensivo), tão pouco bilioso, tão pouco tomado de cuidados e de indignação, tão intrigantemente feliz? Por que me limitei a responder com uns poucos "Muito bem" académicos quando Henry James, Ezra Pound, Harold Stearns e os emigrés do Greenwitch Village lançaram os seus apelos sucessivos à intelligentsia bem nutrida para que abandonasse a choldra, rumando a terras mais justas, livrando-se da maldição para sempre? A resposta, obviamente, deve ser procurada na natureza da felicidade, o que predispõe à metafísica. Mas vou manter-me com os pés assentes no chão. Para mim (e posso apenas seguir o meu próprio faro), a felicidade apresenta-se como um todo, pelo menos, tripartido. Par ser feliz (reduzindo tudo ao essencial) preciso de estar:
a) Bem alimentado, livre de preocupações mesquinhas, à vontade na mãe pátria;
b) Repleto de um reconfortante sentimento de superioridade em relação à grande massa dos meus compatriotas;
c) Permanentemente divertido, com finura de espírito e de acordo com o meu gosto.
É minha opinião que, caso esta definição seja aceite, não existe país à face da terra onde um homem com uma maneira de ser parecida com a minha - um homem com as minhas fraquezas e vaidades, os meus apetites, preconceitos e aversões - possa ser tão feliz, ou mesmo feliz pela metade, como aqui, nestes estados livres e independentes. Vou mais longe postulando que é fisicamente impossível para um homem como eu viver Nestes Estados e não ser feliz. É isto tão impossível como vermos um rapazinho chorar por descobrir incendiada a sua escola. Quem disser que não é feliz aqui, ou mente ou é louco. Aqui, arranjar um modo de vida, especialmente desde que a guerra trouxe o saque de topda a Europa para os cofres nacionais, é incomparavelmente mais fácil, de facto, que, para fracassar, qualquer pessoa culta e com capacidades tem de desenvolver esforços deliberados nesse sentido. Aqui, a média geral de inteligência, de conhecimento, de competência, de integridade, de respeito próprio e de honra é tão baixa que qualquer homem conhecedor do seu ofício, que não receie fantasmas, que haja lido cinquenta bons livros e pratique os bons costumes, dá tanto nas vistas como uma verruga na cabeça de um careca e é atirado, quer queira, quer não, para o seio de uma limitada e exclusiva aristocracia. E aqui, mais do que em qualquer outro lugar que conheça ou de que tenha ouvido falar, o panorama da vida quotidiana, da estupidez pública e privada -o desfile interminável de extorsões e fraudes governamentais, de bandidos e comerciantes sem escrúpulos, de palhaçadas teológicas, de brejeirices estéticas, de vigarices e aleivosias legais, de uma miscelânea de imoralidades, torpezas, imbecilidades, fenómenos grotescos e luxuosidades - é tão extraordinariamente alarve e ridículo, de tal modo elevado à mais alta voltagem, tão regularmente enriquecido com uma audácia e uma originalidade, quase para além dos limites da imaginação, que é preciso termos nascido com o diafragma petrificado para não adormecermos todas as noites contorcidos de riso, e não acordarmos todas as manhãs com a ânsia pueril de um catequista que faz o circuito dos peep-shows de Paris.»
- Henry Louis Mencken, "On Being an American in Prejudices" (trad. port. da Antígona)

Uma obra, aproveito para informar, que foi escrita -muito bem escrita, aliás - nos anos Vinte do século homónimo.
A nós, deixa-nos entregues a uma singular ginástica mental: a de imaginar tudo isto elevado, não apenas à quarta potência, o que já seria assombroso, mas à "Super-Potência", o que é ainda mais hilariante.
Não obstante, se foi dum caldo destes - e tudo indica que sim - que evoluiu o Grande Império dos nossos dias, o Tal, o enlevo de bimbos e saloios globais, às mancheias -, então animemo-nos: dado o estado em tudo semelhante deste nosso rincão, por esta altura do campeonato (até andámos a sacar à Europa, não esqueçam), é bem provável que, o mais tardar, em cinquenta anos, estaremos ao leme do planeta.
Haja, pois, esperança. Que imbecilidade, palhaçada, torpeza, aleivosia e a desmesurada audácia que tudo isso promove, aqui, como lá naquela época embrionária, também não faltam. É mesmo uma farturinha que augura -em repicar de sinos! - os maiores cometimentos e as mais mirabolantes façanhas. Uma nova saga épica, de certeza absoluta.

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