terça-feira, março 04, 2008

Parménides revisitado

Diz-me o leitor "Modernista" que Nietzsche terá dito muitos disparates e alarvidades.
Ora, eu não podia estar mais de acordo. Nietzsche disse-os de facto, como todos os grandes filósofos os disseram e escreveram. De resto, a diferença maior deles para os pseudo e nanofilósofos, não reside no milagre augusto de não dizerem quaisquer disparates ou alarvidades, mas no facto concreto de não dizerem apenas ou quase exclusivamente disparates e alarvidades.
Uma outra característica principal, já que falamos nisto, foi, por um lado, o terem-nos dito em primeira-mão; e por outro, o terem originado acerca deles, desses seus disparates genuínos, catadupas e catadupas de disparates e alarvidades ainda maiores, de fancaria e contrafacção, com que, canibalisticamente, os pseudo e nanofilósofos fartaram os seus esquemas, os comentadores anafaram os glúteos e os mestres-escola molestaram e esterilizaram os alunos.
Nunca esquecendo nós, no meio de tudo isto, que, como prescreveu certo filósofo, há sempre um certo risco (se é que hoje em dia não paira mesmo uma quase-garantia) de uma alarvidade de hoje se tornar numa verdade solene do amanhã. E vice-versa. São os tributos que a tal "evolução permanente", em regime de turbo-dialéctica, cobra.
A terminar, faltará talvez dizer que nunca agradeceremos o suficiente a Nietzsche pelo bónus extra: o de mesmo os maiores disparates e alarvidades no-los ter servido sob uma forma magistral.

5 comentários:

Anónimo disse...

Dragao,

Aproveita-se de uma meia-frase minha para descarregar os canhoes. Isso e pirataria! Eu disse que o Nietzsche disse disparates e alarvidades mas que da minha parte leva uma amnistia incondicional. A contabilidade da obra do Fred resulta, julgo eu, num saldo francamente positivo.

Modernista

Anónimo disse...

Ja agora, vou escandaliza-lo para nao dizer que eu so dou musica.

A transcricao que eu fiz de dois excertos da segunda parte de "A Questao Judaica" do Marx que eu fiz no comentario ao post de ontem e muito mais interessante, intelectualmente, do que a do Nietzsche. O Nietzsche critica o burgues, como modelo de atitudes, como individuo. O Marx julga que os comportamentos sao condicionados por uma ordem institucional, uma ordem que passa largamente despercebida. Esta perspectiva parece-me teoretico-socialmente muito mais avancada do que o "cinismo" e o "moralismo" praticados pelo Nietzsche.

(Quanto ao mais, trata-se sobretudo de um caso pontual. Eu concordo com o Ricoeur que o Nietzsche, tal como o Marx e o Freud, tem uma narrativa poderosa sobre os bastidores da conduta individual. So nao vou ao ponto de os colocar na mesma "escola", como fez Ricoeur quando os chamou a "escola da suspeicao" ou "hermeneutica da suspeicao".)

Mai nada...

Modernista

dragão disse...

Pirataria e flibustura. Tenho toda uma confraria a dignificar.
Mas não descarreguei canhões nenhuns. Aproveitei apenas o mote.
Não posso partilhar da sua ternura pelo Carlitos - todo aquele hirsutismo cavernícola inspira-me sérias desconfianças -, mas de modo algum gostaria de interferir com os seus regalos intelectuais, ou contribuir sequer para que arrefecessem.
A diferença na perspectiva só valoriza e favorece o diálogo, tanto quanto alimenta a caldeira do debate.
Branda-me pois o uliginoso barbaças que eu, em devido tempo, cá o escanhoarei.Assim a cega Atropos o permita.

Entretanto, ó caro modernista, deixo-lhe uma singela perguntinha que agradeço tenha a benevolência de responder:
«Fora o superior número, porque é que a classe dominada é "melhor" que a dominante?"


Cmts

Anónimo disse...

Ehehehehe...

Quanto a pergunta, respondo: "nao e". E o comunismo e absurdo. Como tambem e absurda a teoria do valor-trabalho e pelo menos altamente discutivel a plausibilidade, ou mesmo o valor heuristico, das leis da dinamica do capitalismo. Muito do que o Marx escreveu nao presta. Mas alguns escritos do Marx sao contributos decisivos para dois projectos intelectuais da maior importancia: (a) a critica da sociedade comercial atraves das criticas da alienacao do homem relativamente a si mesmo e ao proximo; (a) a constituicao intelectual da teoria social, como disciplina relativamente independente (embora nao absolutamente independente, contra Marx) da filosofia. Em (a) Marx e sobretudo um seguidor de Aristoteles, recuperando a perspectiva "teleologica"; em (b) Marx combina os interesses tematicos da economia politica classica com as visoes da historia e da sociedade do Hegel, contribuindo para uma concepcao mais rica da "praxis" do que a presente no individualismo metodologico de um Hobbes, de um Locke ou de um Smith.

Alem do mais, meu caro Dragao, para o Marx o dominio dos "dominados", via ditadura do proletariado, e uma contingencia na realizacao de uma "comunidade livre de produtores-trabalhadores". E para Marx essa comunidade e o verdadeiro "reino dos fins" Kantiano, em que a liberdade, cuja essencia (para Hegel e Marx) e a auto-expressao individual atraves do reconhecimento mutuo, se realiza. De modo que, no fim da linha, ninguem domina ninguem.

Quanto a avaliacao moral do "episodio contingente" da ditadura do proletariado, Marx nao tinha paciencia para esse genero de abordagem: os proletarios tem de ser herois para se libertarem e os burgueses tem que sangrar para o homem se realizar. Aqui e que o Marx, seguindo mais de perto o Hegel do que por vezes se reconhece, se torna mais absurdo e intragavel.

Note bem que a minha admiracao pelo Marx e fragmentaria e referida a historia das ciencias sociais e da filosofia politica na modernidade. De resto, o que de melhor se encontra no Marx ja tinha sido dito pelo Aristoteles. Mas la que eu tenho uma fraqueza contemplativa por bocados do edificio marxistoide, isso tenho.

Em ultima analise, no entanto, sou radicalmente anti-marxista. Nao ha uma unica licao do marxismo que, na economia das minhas pauperrimas meditacoes, tenha outro valor que nao heuristico. Nao ha nada que tome por prescricao, ou leve mesmo, mesmo, mesmo a serio. (E o mesmo digo relativamente ao Nietzsche).

Modernista

Anónimo disse...

Caro Modernista,

Acha mesmo que a teleologia marxista é metafísica (no sentido grego e não no sentido pós-escolástico)? Que a ética marxista é aristocrática - aliás, há alguma ética em Marx? E que a política marxista é realista?...

Consegue ver o venerando Aristóteles, em matéria económica, a aturar essa coisa maravilhosa chamada "industrialização" e, não contente com isso, a declará-la peremptoriamente como condição material necessária para a libertação dos escravos?...

Agora numa coisa estamos declaradamente de acordo: Locke é seguramente um dos maiores excrementos que a sofística alguma vez pariu.