terça-feira, junho 23, 2009

Sangue na estrada...e na maternidade.



Andava hoje pelas parangonas pasquinácias: o governo a congratular-se com a relevante diminuição nas estatísticas de mortes nas estradas portuguesas. Isto, como dizem os anglofónixes, é juntar o espancamento ao insulto. Como assim?
Então, basta acompanhar as notícias, nem requer dedução ou grandes matemáticas. Nos mesmos jornais - e nalguns até na mesma página - onde o governo hoje se congratula, anuncia-se, em pequena caixa, a morte de mais dois portugueses nas estradas espanholas - ali prós lados de Toledo, se bem memorizo. Ora aí está metade da explicação: os portugueses estão a lerpar menos nas estradas portuguesas porque andam a espatifar-se, de preferência, lá fora nas rodovias espanholas, francesas, inglesas, luxamburguesas, suiças, angolanas, etc. Foi uma vitória das políticas governamentais de segurança rodoviária (estou-me até a lembrar do Armando Vara, com aquela bela empresa de cartazes...)? Sem dúvida que sim. O Governo conseguiu enxotar grande parte dos portugueses que se matavam estupidamente nas estradas portuguesas. Através da emigração, essa engenharia social já atávica, lá os despachou, na mecha, que é como eles gostam, a rebentarem-se todos, ainda mais estupidamente, nas estradas estrangeiras. Agora, as estatísticas alheias que os aturem. Suponho que a isto se poderá chamar xenobolia. Pô-los no outro lado da fronteira em perfeita sincronia: a matarem-se a trabalhar e a matarem-se na estrada.
Falta, entretanto, falar dos outros. Os que ainda não saíram disparados lá para fora e continuam apenas disparados cá dentro, em circuito fechado, à maneira dos hamsters turbo-diesel(fora o período de férias ou de pontes, em que, de pedal a fundo, abalam também lá para fora), e, destes todos, uns porque ainda não conseguiram, outros porque não precisam, os restantes porque passaram à resistência, mais até do que à simples resignação. Nesta gente diversificada reside a outra metade da explicação. Que troco já por miúdos, salvo seja. Como se segue:
Os que não conseguiram ainda estropiar-se e cagamerdar-se todos lá fora continuam a alimentar as estatísticas cá dentro (naturalmente que mirraram e deslevedaram estas porque tais roedores de asfalto - ou motolemmings, como preferirem - vêem as suas fileiras sofrer constantes hemorragias e deserções de efectivos, quer para os que passam a engordar as estatísticas estrangeiras, quer para os que passam à resistência interna). Por seu turno, os que não precisam, esses, proprietários ilustres de cartão partidário mai-las respectivas coalescências vorazes, dado que andam cada vez menos de automóvel cá dentro porque, a maior parte do tempo e velocidade de deslocação gastam-nos de avião - ora em serviço, ora em lazer, passe o pleonasmo - lá para fora, também contribuem cada vez menos para a bisonha nediez das estatísticas nacionais. Finalmente, os da resistência, salvo quando são colhidos abruptamente nalguma passadeira, pescados de ricochete num ou noutro passeio menos cauto, ou tractorados a algum precipício pelo transporte público onde os engodaram, o seu contributo é, seguramente, o mais despiciendo de todos.
Estarei a ser duma minúcia atroz? Tanta verdade junta até chateia? Pois. Será. Mas, entretanto, o governo congratula-se.
Sim, porque as próprias criancinhas também morrem menos nas estradas portuguesas. Eventualmente, porque também nascem menos. Despistam-se logo, ainda no útero. Desmaterno.

PS: A expressão "logo ainda" não estará própria e gramaticalmente correcta, mas há muita coisa que não está correcta e ninguém se queixa. Demais, nós, os estilistas, podemos incorrer em brutas calinadas e chamar-lhe estilo. No caso, posso até adiantar ao pentelhistas do costume que, na frase, o verbo é "despistar-se logo", que é diferente do "despistar-se" simples, ou do "despistar-se mais adiante" ou "despistar-se daí a um grande bocado"; o resto, chamem-lhe o que quiserem. Entretanto, notem como através da indrodução astuta da virgulazinha o prodígio acontece. Pois é, é assim que a língua portuguesa pula e avança. Agora vou só ali meditar como hei-de baptizar esta nova figura de estilo.

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