sábado, junho 13, 2009

Se o cadáver, ao menos, fosse indiano




Aqui há tempos, quando eu de dei ao trabalho de proferir um certo número de verdades acerca do cinema, ocorreram, em simultâneo, dois fenómenos de injustiça concorrentes: um, da parte dos leitores; outro da minha própria parte (se é que a língua portuguesa permite um abuso destes). O primeiro, vamos lá às explicações minuciosas, porque no exercício do pensamento mágico muito típico da clubite contemporânea, os leitores abespinhosos trataram de achar que eu denegria o cinema sob o intuito altamente manhoso de enaltecer a literatura, o teatro, a música, a pintura ou qualquer uma dessas artes ancestrais que foram acompanhando o homem ao longo da civilização (e, em grande parte, como forma de se refugiar dela). Como se a literatura, a música ou o teatro precisassem de rasteirar alguém, ainda por cima anão, para se evidenciarem. Quanto a isso, posso, e devo, tranquilizá-los soberanamente: se o cinema, de ordinário, é a porcaria que se assiste, a literatura, a música, o teatro e as outras artes actuais não só não andam muito longe disso, como chafurdam alarvemente no mesmo chiqueiro. O que torna o cinema apenas mais vistoso, pato-bravo e supimpão é o facto de, sendo uma amálgama industrializada das outras todas, acumular esterco e javardice a níveis verdadeiramente ciclópicos, ou melhor dizendo: enciclópicos. Isto não invalida que não possam surgir, rara e extraordinariamente, bons filmes, ou bons romances, ou boas peças. Mas essa não é, actualmente, a regra. Peças de teatro, então, é um deserto num planeta inóspito e desabitado. E, para falar com franqueza, os livros, e as músicas andam ainda mais raros que os filmes. Talvez porque um bom livro seja imensamente mais difícil de produzir que um bom filme. Aliás, um livro, em sendo autêntico, é vida, pelo que nem se produz: cria-se (e logo aí é todo um mundo de diferenças) . Imaginemos, por exemplo, o "Viagem ao Fim da Noite", ou o "Der Waldgang" (também conhecido pelo "Tratado do Rebelde" ou "O passo da floresta"), só para citar duas das poucas obras de jeito produzidas no século XX, vertidas em filme. Estão a ver o abismo? Se calhar, porque as verdadeiras artes são individuais e as pseudo-artes (na verdade, indústrias) são colectivas. Há, estou em crer, uma excepção nisto, mas não vou dizer qual é.
Finalmente, e quanto ao segundo fenómeno, a da injustiça por mim cometida... Tenho que dar a mão à palmatória. É verdade. A minha análise debruçou-se essencialmente sobre o cinema americano. Porém, é claro que se, deitado na mesa de anatomia, me aparecer - em vez do famigerado Hollywood - Bollywood e o cinema indiano, não terei outro remédio senão arrepiar caminho e rever radicalmente as minhas teses. Felizmente, no meio de tantos melindres (até por email), ninguém ainda se lembrou disso.

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