domingo, julho 19, 2009

A Pedra e o pão

«O tentador aproximou-se e disse-lhe: "Se tu és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se convertam em pães". Respondeu-lhe Jesus: "Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.»
- Mateus, 4, 3-4





«Mas tu não quiseste privar o homem da liberdade, e recusaste, calculando que ela era incompatível com a obediência comprada pelos pães. Replicaste que o homem não vive só de pão, mas não sabes que, em nome desse pão terrestre, o Espírito da Terra se insurgirá contra ti, e lutará, e te vencerá? Que todos o seguirão exclamando: "Quem é semelhante a este, que nos deu o fogo do céu?" Hão-de passar séculos e a humanidade proclamará pela boca dos seus sábios que não há crimes e, por consequência, não há pecado; que só existem esfaimados. "Alimenta-os e exige que sejam virtuosos!" Eis o que escreverão no estandarte da revolta que abaterá o teu templo. Em seu lugar elevar-se-á novo edifício, uma segunda torre de Babel, que ficará, sem dúvida, imperfeita, como a primeira. Mas terias podido poupar aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque eles virão encontrar-nos, depois de haverem sofrido mil anos a construir a sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra, como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão outra vez) e bradarão: "Dai-nos de comer, pois os que nos prometeram o fogo do céu não no-lo deram". Então concluiremos a sua torre, porque para isso só nos falta o alimento, e nós os alimentaremos, invocando o teu nome. Sem nós, estarão sempre esfomeados. Nenhuma ciência lhes dará pão enquanto forem livres, mas acabarão por depor a nossos pés essa liberdade, dizendo: "Reduzi-nos antes à servidão, mas alimentai-nos!" Compreenderão então que a liberdade é inconciliável com o pão da terra em abundância, pois nunca saberão reparti-lo entre si!
(...)
Porque não há para o homem, tornado livre, cuidado mais constante, mais ardente que procurar um ser perante quem se inclinar. Ora ele não deseja inclinar-se senão defronte duma força incontestada, que todos respeitem por consenso universal. Essas pobres criaturas atormentam-se a buscar um culto que reúna não só alguns fiéis, mas no qual todos comunguem, unidos pela mesma fé. Essa necessidade de comunhão na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o princípio dos séculos. Para realizar este sonho é que nos temos exterminado pelo ferro. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Deixai os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E assim será sempre até ao fim do mundo, mesmo quando os deuses tenham desaparecido; prostar-nos-emos diante de ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana, e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que te ofereciam e que faria curvar sem contestação todos os homens diante de ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito, cuidado mais ardente para o homem do que encontrar depressa um ser em quem delegue este dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é mister dar-se-lhes paz de espírito. O pão garantia-te o êxito; o homem curva-se perante quem lho dá, pois é coisa incontestada; que outro, porém, se torne senhor da consciência humana, o mesmo homem o seguirá, deixando o dador de pão por aquele que lhe cativa o espírito. Nisto tinhas razão, viste o segredo da natureza humana consistir não só em viver, mas também em achar motivo para viver. Sem uma ideia nítida da finalidade da existência, o homem prefere renunciar a ela; ainda que rodeado de bens materiais, preferirá destruir-se a permanecer na Terra. Mas que sucedeu? Em vez de te apoderares da liberdade humana, tu ainda a dilataste.
(...)
Preparaste assim a ruína do teu reino; não acuses ninguém dessa ruína. Todavia, era isso que te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados. São elas: o milagre, o mistério, a autoridade.
(...)
Ignoravas, contudo, que o homem recusa Deus ao mesmo tempo que o milagre, quando é sobretudo este último que ele procura. E como não pode passar sem ele, engendra novos, os seus próprios; inclinar-se-á diante dos prodígios de um feiticeiro, ainda que se trate de um rebelde, de um ímpio, de um herético. Não desceste da cruz quando troçavam de ti e te gritavam, por escárnio: "Desce da cruz e acreditaremos em ti." Não o fizeste, por não quereres sujeitar de novo o homem ao milagre: desejavas uma fé livre, não inspirada pelo maravilhoso. Precisavas de um livre amor, e não dos transportes servis de um escravo aterrado.»

- Dostoievski, "Os Irmãos Karamazov" (episódio do Discurso do Inquisidor-Mor)

Porque a literatura também tem as suas catedrais.

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