quinta-feira, maio 24, 2012

Introdução ao Paradoxo - III.A nobreza do carácter antes da pureza do sangue

«Por nobre entendo aquele cujas virtudes são inerentes a uma estirpe; por de nobre carácter entendo aquele que não perde as suas qualidades naturais. Ora, a maior parte das vezes, não é isso que acontece com os nobres, pelo contrário, muitos deles são de vil carácter. Nas gerações humanas há uma espécie de colheita, tal como nos produtos da terra e, algumas vezes, se a linhagem é boa, nascem durante algum tempo homens extraordinários, depois vem a decadência. As famílias de boa estirpe degeneram em caracteres tresloucados, como os descendentes de Alcibíades e de Dionísio, o Antigo; as que são dotadas de um carácter firme degeneram em estupidez e excesso (hubris), como os descendentes de Cimon, de Péricles e de Sócrates.»

- Aristóteles, "Retórica"

"Aquele que não perde as suas qualidades" é, dito muito sucintamente (e bem adaptado aos nossos tempos) aquele que não se deixa corromper. É aquele que permanece fiel aos princípios e perseverante nos fins que esses princípios autorizam. É por isso que a nobreza é, mais que um mero existir (enquanto fruto ocasional de uma estirpe ou linhagem) , um deliberado agir. E como o acto puro está reservado para Deus, ao homem de carácter nobre resta-lhe o acto virtuoso (a coragem, a magnanimidade, a generosidade, a temperança, a equidade, etc ):. Não vou alongar-me para aqui num tratado sobre Aristóteles (assunto em que dando-me  corda correríamos o risco de só me calar por interrupção da morte), mas sempre adianto que tudo isto tem um consequência muito simples tanto quanto inexorável: a nobreza é uma característica indivídual, não é um qualidade específica suscetível de produção em série. Na verdade, não há hereditariedade garantida na própria nobreza enquanto estirpe. Não é possível, para Aristóteles, treinar ou produzir espécies (raças, traduzindo para categorias o século XIX) nobres. E a principal razão porque não é possível é porque mão é natural. As regras da fusis  são as regras do antropos. Este não está separado daquela. Apenas é possível, no melhor dos casos, instruir indivíduos. Alexandre o Grande foi a prova cabal e exemplar  disso mesmo. 
Porém, qual o termo na língua grega com que Aristóteles (e a antiguidade) designava "nobreza"?  Eugenia, nem mais. Uma palavra que, como calculam, irá fazer uma grande - e abissal - viagem...

1 comentário:

Duarte Meira disse...

Caro Dragão:

“Permanecer fiel aos princípios e perseverante nos fins”? Sem dúvida. O nosso excelente rei-filósofo de quatrocentos chamar-lhe-ia Lealdade. O Cristinismo veio, contudo, introduzir uma exigência mais ambiciosa, em vista dos “últimos fins”; e de aí, porque o gosto de todos os fins meramente humanos, logo que alcançados no apertado espaço e tempo finito deste mundo, deixam sempre um ressaibo de desgosto, sem abrogarem um fundo e permanente Désir (como diria o irmão del-rei), - o mote ou motivo famoso: Nec Plus Ultra. E uma razão (entre outras) de ser assim tem a ver precisamente com o que diz, aristotelicamente, sobre a diferença ontológica entre o Acto puro e o acto humano duma acção potencialmente afectável de degradação e, de facto, neste mundo fatalmente afectada duma finitude carcerada pela morte.

«E a principal razão porque não é possível é porque não é natural. As regras da fusis são as regras do antropos. » Parece-me que o naturalista Aristóteles antes reputaria o inverso, e precisamente porque... « as regras da physis são as regras do anthropos». A não ser assim as “regras” deste poderiam ser as de forjar um enhanced human, como dizem os engenheiros actualmente envolvidos no programa. No grande observador realista que foi o Estagirita, há sempre em primeiro lugar que respeitar a natureza das coisas, que é cíclica: períodos de eugenia, períodos de disgenia. E a sobreveniente necessidade duma Boa Educação cidadã (política) faz-se justamente mais precisa quando os bem-nascidos em boas famílias apresentam tendências degenerativas. E que melhor mestre do que Sócrates, para o efeito ? Viu-se o que ele conseguiu com o belo Alcibíades... Viu-se o que ele conseguiu em recompensa da Cidade... É o paradoxo terrível com que o herdeiro Platão se confrontou .

Mas os modernos não suportam paradoxos, nem sequer os da lógica. Muito menos os períodos de aridez e más colheitas, possessos que andam do “progresso” e produtividade continuados e multiplicados . Não se tratava, pois, para os antigos, apenas de escassez de recursos técnicos, mas da Paciência ante os bons asos, os tempos propícios. Os nossos jovens engenheiros dos Mit e das Darpas não sabem disso. Para estes glabros e descapilados, - se não é natural, então é possível!

Bem sei que o meu caro Dragão não perde é ocasião de arpoar as coelhadas grunhas e roedores relvas do “nosso kantinho”. Mas não perca mais que duas-três linhas com semelhante bestiário; e prossiga esta série que, pelas pérolas da amostra, promete levar rumo da Recuperação de tesouros perdidos.