quarta-feira, março 04, 2015

Entre Cila e Caribdis

Por me falarem em Aristóteles...
Notem que o postal que se segue é de Julho de 2004.
Notem que os suprassumos da gestão que então relampejavam  e acabaram naquilo que hoje bem sabemos (desde o DDT aos Bavas e associados), faziam as delícias de muitos dos que agora se tomam de virgindade austeritária e estatolatria partidona. Mas naquela época, com que furor e gula conclamavam à globalização formidável, ao financeirismo catita, à santa banca dos gestores marvilhosos, etc, etc. E o alucinado, claro está, era eu. Bem, acho que hoje já se pode tentar um juízo com mais sólida base empírica. Pelo menos para apurar, com um bocadinho mais de rigor, de que banda é que, efectivamente, bufava a fantasia...

...//...


«Quanto ao homem de negócios, é um ser fora da natureza, e está bem claro que a riqueza não é o bem supremo que procuramos." 

-Aristóteles, "Ética a Nicómaco", Liv I 



«As ferramentas são, umas, animadas, e outras, inanimadas.(...)Também o escravo é uma propriedade animada.(...) Aquele que sendo homem não pertence por natureza a si mesmo, mas que é homem (ferramenta/instrumento) de outro, esse é, por natureza, escravo.» 
- Aristóteles, "Política", Liv.I 



Eu cada vez acho mais graça aos nossos democratas liberais. Dispõem dum raciocínio a todos os títulos singular. Esgrimem argumentos lógico-dedutivos fulgurantes. 
Não se cansam de propalar aos quatro ventos como detestam tiranias, absolutismos (especialmente estatais), arbitrariedades e ditaduras. Fascismos, nazismos, comunismos, religiões, filosofias, agoniam-nos, infestam-nos de comichões alérgicas. Solidariedades sociais transportam-nos a indignações semi-epilépticas, a jorros eméticos. Burocracias, ainda que mínimas, deixam-nos transtornados, cacofóricos, a quase espumar pela boca, atirando madeixas de cabelo ao chão e murros ao peito. 
Mas isto, tudo isto, meus amigos, em termos políticos. Em termos estritamente políticos. Aliás, o problema, segundo eles, qualquer problema, é sempre político. Já a solução (e com ela a salvação), é invariavelmente económica. 
Mas atentemos na sua cartilha economística... 
Uma empresa, por exemplo, o que é uma empresa? Para mim e para outros leigos heréticos como eu, será (dito simploriamente, é claro) um conjunto orgânico de pessoas (administração, direcção, produção, transporte, comercialização, etc,) com diversos níveis de tarefa, responsabilidade e recompensa, + um conjunto de meios (máquinas, viaturas, matérias primas e outras, ferramentas, etc), + um conjunto de instalações, e com a finalidade de ser auto-subsistente e dar lucro. Haverá empresas grandes, médias e pequenas, mas todas elas, com as adaptações inerentes à sua dimensão, cumprirão, mais ou menos, este padrão. 
Mas isto somos nós, os leigos, os simplórios, a delirar. Porque, uma vez poisados na realidade, o quadro é outro: os nossos democratas liberais, crânios sofisticados, inspirados nas idílicas engrenagens anglo-saxónicas (e apenas nessas, que nada mais presta ao cimo da Terra, e todo o restante mundo ou vive na indigência -física ou mental -, ou pra lá caminha), expurgam e purificam substancialmente a coisa. A empresa restringe-se à sua administração (os empresários e gestores), transferindo-se todo o seu restante pessoal -especialmente a malta da produção-, para a categoria dos meios, sob o item "ferramentas". Quanto à finalidade, resume-se agora ao dar lucro ao empresário (e gestor), seja, essa mesma empresa, auto-subsistente ou não. Toda a essência da coisa passa, assim, para o empresário/gestor; todo o resto desce para a categoria do acessório. Dito doutra maneira: a empresa é uma espécie de máquina (composta de ferramentas -humanas e não-humanas-, meios e instalações) que compete ao empresário (administrador/gestor) pilotar e extrair gozos. Em boa verdade, só este, o piloto, é que doravante pode ser considerado efectivamente humano, ou seja, com cidadania plena; com direitos e necessidades grandessíssimas. O resto sujeita-se aos ditames do mercado. E carrega, em calvário se preciso for, com os deveres gerais. 
Esta nova religião encontrou em Portugal solo fértil e estrume em abundância para o seu cultivo. O empresário português, dadas as excelentes condições naturais, é pródigo em superações ao próprio modelo. Se lhe perguntássemos (e aos seus apologetas, os democratas liberais) o que é a empresa? Ele responderia, prontamente, todo ufano e vaidoso, detrás da gravata e da panóplia de telemóveis: "A empresa sou Eu!" 
Ora, nem mais. Eis o solipsismo mercantil no seu melhor! O absolutismo econocrata elevado ao patamar sublime! O reinado do Empresário-Sol, no zénite do seu apogeu! 
Compreende-se, assim, a nova revolução copernicana que os nossos democratas liberais catequizam: Estando o Empresário investido das funções de Sol não se compreende que gire à volta do País-Terra, mas sim o País-Terra que gire e se submeta à sua massa atractiva e soberana de Sol, à sua luz e calor beneméritos, aos seus caprichos de estrela e astro comandante do sistema. É Ele que dá vida, isto é, o emprego. É ele, lá no alto, que, pelo seu toque demiúrgico, anima as ferramentas humanas, doutro modo prostradas e pasto de ferrugem e desemprego, à mercê de depressões e lotarias. 
Mas compreende-se, sobretudo, como aquilo que eles execram na dimensão política -a autocracia, a ditadura, a burocracia estatal-, idolatram, em contrapartida, na dimensão económica. O que nas garras do Estado é infâmia (e é, de facto), devém virtude nas patas do privado. A ditadura do proletariado é horrível (pois é); mas a ditadura do empresariado é santa. Que uma oligarquia parasita, endogâmica e endémica, se sirva dos cargos do estado para roubar e sabotar o esforço e o trabalho das pessoas deste país é péssimo; mas uma oligarquia de empresários que a substitua nessas mesmas funções é óptimo, representa um progresso inaudito, uma conquista revolucionária. 
Repare-se numa aplicação prática desta mentalidade peregrina: 


Mas aqui, atente-se, é já o próprio estado, ou alguém em nome dele, a converter-se à nova ideologia. A Direcção Geral de Impostos é promovida a empresa, ou seja, a máquina. Contrata-se um bom piloto, um homem da Fórmula 1, para guiar a máquina. Gratifica-se e estimula-se o piloto em conformidade, caso contrário ele não aceitava a nobre missão. É uma excelente teoria. Até já vi pessoas normalmente inteligentes e sensatas a elogiá-la. 
Só tem um ou dois problemas, pequenos é certo, mas que não cabem debaixo do tapete. Não adianta pois varrê-los para lá. 
1. Sendo uma "máquina", todos concordamos que está avariada. Contrata-se um piloto de fórmula 1 para guiar um monte de sucata? 
Vamos competir em que campeonato? 
2. Não sendo uma "máquina" (como não é), ao estimular-se e gratificar-se principescamente o Director, duma forma ilegal e obscena (dada a realidade actual), está-se a desestimular e a simbolicamente espoliar todas as outras centenas de pessoas que constituem essa Direcção Geral (e os próprios contribuintes do país, a limite). Em vez dum esforço geral de melhoria, está-se, pois, a promover um esforço individual de melhoria (por parte do novo director) e um contra-esforço geral de resistência e desinteresse coorporativo (por parte de quase todos os outros). Experimentem colocar-se no lugar deles...As intenções que presidem ao expediente, como sempre, poderão ser as melhores; mas o Inferno é que vai, mais uma vez, lucrar com elas. A esta altura já transborda. 
3. Por fim, usando o léxico muito querido aos nossos democratas liberais a respeito das empresas públicas em dificuldades: resolve-se o problema não atirando dinheiro para cima da Direcção Geral de Impostos SA (que dá prejuízo e devia dar lucro), mas atirando dinheiro para o bolso do novo Director, em comissão messiânica. É isso, não é? 



Ainda D.Sebastião não se dignou regressar ao país, e já querem desviá-lo para as empresas, ainda por cima estatais?... 



E nós, portugueses, qual é o nosso papel no meio disto tudo (além de basbaques, claro está)?!... 
Andamos aos tombos, da esqerda prá direita, da direita prá esquerda. Vamos de roldão, de Cila para Caríbdis, e de Caríbdis para Cila. Estamos reduzidos a esta confrangedora odisseia, com Ulisses naufragado entre as sereias e Ítaca entregue à voragem dos pretendentes. Vamos queixar-nos de quem? O esquema é deles. Mas a culpa é nossa. 



E o que mais convinha que percebessemos, todos, é que Portugal se constrói com os portugueses e não contra os portugueses, sejam eles quais forem. 
Mas desculpem, já me esquecia: afinal, é da destruição que se trata. Pois, que distracção a minha. 
Já cá não está quem falou. 



PS: Entretanto, com todo este know-how peregrino em erupção, com tanta tempestade cerebral à solta, erguemo-nos cada vez mais destacados, qual farol altaneiro - imune às vagas da lógica e do bom senso - no Cabo do Paradoxo: temos, ao mesmo tempo, os mais divinos empresários e administradores do universo, e as empresas e o Estado mais rascas e miseráveis da Europa. 

1 comentário:

zazie disse...

ehehe Podes crer.

A diferença é que agora, se quiseres contactar um desses superiores burocratas não sabes se ainda está no cargo ou se já está na cadeia.